A Covid-19 impactou consideravelmente a vida das pessoas no mundo todo em diversos aspectos, inclusive no que se refere à alimentação.
No Brasil, os relatos de mudanças nos hábitos, com reflexo na saúde das pessoas, vão da forma de comprar os itens da dieta diária, até a prática de atividades físicas; do vínculo com o trabalho, ao relacionamento com a família e os amigos.
Para enxergar algumas das mudanças trazidas pelo coronavirus, precisamos de múltiplos olhares, de profissionais de diferentes áreas, para explicar o contexto. Vamos começar falando de economia. Você compreende por que os preços estão disparados e como isso afeta a alimentação e o nosso poder de compra? De acordo com o Economista Chefe do Sistema FIERGS, André Nunes de Nunes, podemos dividir a pandemia em três principais momentos:
- Primeiro momento (março de 2020): fechamento de atividades econômicas, incerteza generalizada, campanha para ficar em casa.
- Segundo momento (abril de 2020): queda na produção de insumos e produtos - foi o pior mês da história para a economia brasileira.
- Terceiro momento (a partir do segundo semestre de 2020): incentivo ao consumo - incerteza começa a diminuir, demanda volta forte, mas restrita.
De acordo com o economista, "com receio de que uma crise sanitária se transformasse numa crise financeira ou depressão econômica, um volume sem precedentes de estímulos foi injetado na economia". Hoje, o cenário é de dívida pública e inflação crescentes, com um mercado de trabalho ainda fraco. E, por mais que tenhamos a sensação de que só o Brasil está em crise, na verdade o mundo inteiro está enfrentando dificuldades - em maior ou menor grau do que as nossas. Por exemplo: o aumento de preços foi global, assim como a falta de produtos, que desestabilizou a economia. O nível de preços de alimentos está próximo a um pico histórico no mundo e a inflação nos Estados Unidos é a maior dos últimos 31 anos.
Somado a isso, tivemos uma restrição na oferta de grãos, pois o aumento da demanda extra não significa que o setor conseguirá produzir mais, não é possível colher uma safra extra. E, para completar, temos 5,5 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, o que deixa os índices de desemprego parecidos com o que tivemos nas crises de 2014 a 2016. Ou seja, recuamos quase uma década em nível de emprego.
A perspectiva é que, com o aumento de pessoas vacinadas, o mercado comece a voltar ao normal, que a desaceleração da economia mundial baixe os preços dos commodities.
Utilizamos, com frequência, a comida como um recurso de conforto, para nos acalmar, para ter uma sensação de segurança. "O problema é que, na pandemia, fizemos isso com uma frequência muito maior e, somado ao fato de não termos as atividades que normalmente cumprem essas funções de trazer bem-estar, o resultado se reflete no estado de saúde e índices de obesidade a nível mundial", explica a nutricionista clínica, Letícia Christianetti, coordenadora e professora da pós-graduação em Equilíbrio Alimentar com ênfase nas Terapias Comportamentais Contextuais, da Faculdade do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (FACEFI).
Conforme a nutricionista, algumas atitudes podem ajudar a melhorar os hábitos alimentares, como falar sobre as emoções, praticar yoga, meditação e, ao bater vontade de comer, parar um instante e pensar se é fome mesmo ou se é tédio, tristeza ou outro sentimento.
Além disso, questões como comprar produtos fresquinhos na feira do bairro (os da época saem mais em conta) e consumir mais alimentos in natura (saladas, frutas, alimentos naturais e que não foram processados) são fundamentais nesse sentido.
Uma boa dica de Letícia é cozinhar grandes quantidades em casa e congelar em pequenas porções para consumir ao longo da semana. Essa prática diminui o consumo de gás e ganhamos em tempo, em insumos e em qualidade nutricional.
Comer com calma, de preferência nos mesmos horários e sempre em locais limpos, confortáveis e tranquilos e onde não haja estímulos para o consumo de quantidades ilimitadas de alimentos são algumas das recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado pelo Ministério da Saúde.
Por fim, é indispensável praticar atividades físicas e buscar ajuda especializada.
O que influencia na nossa alimentação?
São diversos os fatores que influenciam a forma como nos alimentamos: aspectos biológicos, genéticos, socioculturais. Além disso, os nossos pares (família, colegas, amigos, conhecidos) têm grande peso nas nossas escolhas.
A pandemia trouxe muita insegurança e aumentou o prejuízo para aqueles que enfrentam transtornos alimentares.
"O isolamento social resultou em aumento de ansiedade, que consequentemente pode ser um gatilho emocional para pessoas que tenham transtornos alimentares, como a compulsão alimentar. Também, o aumento de tempo dentro de casa em isolamento fez com que as pessoas tivessem mais disponibilidade de alimentos e o contato com mais opções e quantidades. Em diferentes momentos, as pessoas chegaram a estocar alimentos por medo de faltarem no comércio. Portanto, ansiedade e incerteza podem dificultar a escolha alimentar. A redução de atividade física e o aumento do uso de redes sociais e internet provocaram mais insatisfação corporal e comparações, problemas que já são característicos de pessoas com transtornos alimentares. As comparações, inclusive, são vilãs de uma autoestima saudável, que é mais uma dificuldade de ser atingida em diversos transtornos alimentares", explica a psicóloga Andressa Celente de Ávila, professora na graduação em Psicologia do Centro Universitário UNICNEC, e de especialização na área da Psicologia e Terapia Cognitivo-comportamental (IPGS, IPOG e Wainer Psicologia).
Por outro lado, uma parcela da população está querendo voltar à vida regrada e saudável que tinha há um ano. De acordo com Andressa, muitas pessoas tiveram aumento de peso e insatisfação com o corpo durante a pandemia - e não tinham, necessariamente, alguma dificuldade com essa questão ou histórico de transtorno alimentar. "O tempo de isolamento, as pressões, a inseguranças e o medo referentes à pandemia, além de sobrecarga de trabalho, provocaram alterações na regulação emocional de praticamente todos nós. Isso significa que muita gente apresentou, e ainda está sofrendo, dificuldades para lidar de maneira saudável com suas emoções. O aumento de peso, a insatisfação corporal, as alterações de humor e o estresse, além do distanciamento das relações sociais por tanto tempo, são motivos que fazem as pessoas quererem voltar a ter práticas saudáveis e que proporcionem bem-estar físico e emocional", completa a psicóloga.
O isolamento social exigido pela pandemia, somado à falta de tempo e à alta demanda de tarefas, culminou em um aumento no número de pedidos por delivery. Embora todo mundo saiba que o consumo de alimentos ultraprocessados, congelados e de fast food não é saudável, eles acabam sendo a opção pela praticidade.
A obesidade, no entanto, não é um problema que surgiu com a pandemia, apesar de ter se agravado com o maior consumo de lanches, diminuição de atividades físicas e elevação do nível de ansiedade. Já em 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) mostrou que o mundo teve cerca de 3 milhões de mortes por obesidade.
Em contraponto, temos um panorama de insegurança alimentar: 52% dos lares brasileiros estão vivendo a experiência de não ter alimentos sempre que necessário. Como vamos amparar e dar suporte para essa parte da população? É urgente o fortalecimento de políticas públicas que possam garantir a segurança alimentar e consequentemente o combate à fome, como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa Cisternas e o Programa de Restaurantes Populares.
Aumentou o consumo de orgânicos, mas também de ultraprocessados
Uma enquete feita pela Associação de Promoção dos Orgânicos (Organis), revela que o consumo de alimentos orgânicos aumentou 44,5% nos sete primeiros meses de restrições sociais para conter a pandemia da Covid-19.
A enquete foi respondida por 456 pessoas e 62,3% disseram que a preocupação com a qualidade da alimentação aumentou devido à crise sanitária. Sobre o consumo desses produtos, 62,1% afirmam que aumentaram a frequência, 46,6% consomem orgânicos todos os dias e 34,3% duas vezes por semana. Além disso, 82% das pessoas acreditam que a agricultura orgânica pode ajudar a prevenir novas pandemias.
A pesquisa revela ainda que o consumidor acessa canais físicos e digitais para compra de alimentos orgânicos: 50,9% compram em supermercados, 46,5% em feiras, 34,6% em lojas especializadas e 19,1% on-line.
Também vale ressaltar que o isolamento social fez com que muitas pessoas investissem em hortas em casa. Cultivar plantas condimentares ou ervas aromáticas em vasos ou num canteiro levam a uma alimentação mais saudável e, de quebra, a atividade ajuda a relaxar.
Um estudo concluiu que as pessoas com mais escolaridade, em regiões mais favorecidas economicamente, passaram a comer de forma mais saudável, pois puderam se manter em isolamento social e cozinhar em casa. Enquanto isso, a população com menos estudo, em regiões menos desenvolvidas economicamente, que continuou saindo para trabalhar e viu seu orçamento diminuir ou desaparecer, aumentou o consumo de alimentos menos saudáveis, como os ultraprocessados. A análise foi desenvolvida pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (USP) - NutriNet Brasil.
Ainda, de acordo com o estudo, foi verificado um aumento no consumo de frutas (de 78,3% para 81,8%), de hortaliças (de 87,3% para 89,1%) e de leguminosas (de 53,5% para 55,3%), o que se deve à maior permanência das pessoas em casa durante o isolamento social, e que podem ter levado as pessoas a cozinharem a própria refeição, geralmente mais saudável do que aquelas produzidas fora do lar. Os pesquisadores também sugerem que a preocupação com a imunidade do organismo poderia influenciar o consumo de mais alimentos como frutas e hortaliças. Por outro lado, comportamentos alimentares menos saudáveis também podem ter sido induzidos pela dificuldade em sair de casa para obter alimentos frescos e pela redução da renda da família.
Outra pesquisa da USP, conduzida pela Faculdade de Medicina e focada apenas em mulheres (74,5% da região Sudeste), coletou respostas de 1.183 participantes entre junho e setembro de 2020. Os dados mostram que elas estão cozinhando mais, abandonando dietas radicais e reduzindo a ingestão de álcool.
Além disso, a investigação observou que o número de mulheres que faziam as compras de supermercado reduziu bastante, cerca de 34%. Já o hábito de cozinhar em casa aumentou em 28% e o uso de serviço de entrega cresceu 146%.
Prática de atividade física é mais do que gastar calorias, é socialização!
O professor de Educação Física, Diego Moresco, docente na área de fisiologia do exercício, lazer e representações sociais do movimento humano, defende que praticar atividade física vai além do gasto calórico e do objetivo de aumentar a capacidade respiratória, por exemplo. "É um espaço de formação humana. A aderência às atividades físicas está centrada na possibilidade de socialização, em fazer amigos, conhecer pessoas. A prática corporal nos preenche de diferentes formas, que vão além do gasto calórico."
A pandemia, além de impossibilitar o uso da academia, nos tirou grandes chances de socialização. "Perdemos espaço de convívio humano. Parques, praças, equipamentos públicos e privados são causadores de impactos positivos nas comunidades onde estão inseridos", explica Moresco.
De maneira abrupta, a pandemia isolou esses locais de convivência. "São ambientes que contribuem para a saúde mental, sociabilidade, nos ajudam a ter menos doenças psicológicas. Não foi só o gasto calórico que foi afetado, tivemos muitos impactos na forma como a atividade física nos preenchia", alerta o professor.
Isso tudo sem falar na classe menos favorecida, cuja necessidade maior é de ter alimentos e não praticar atividades físicas, que farão a pessoa ter mais fome ainda. "Não tem como pensar em vida saudável para uma população desnutrida. Fome é prioridade e tem que ser combatida", finaliza Moresco.
Mudança de hábitos e aprendizados
Os brasileiros aumentaram suas compras on-line, passaram a usar meios digitais de pagamentos e devem continuar com esses hábitos de compra e consumo no pós-pandemia, segundo um estudo realizado pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC). A pesquisa mostra que 61% dos clientes que compraram on-line durante a quarentena aumentaram o volume de compras devido ao isolamento social e, em 46% dos casos, esse aumento foi superior a 50%. O destaque foi para compras de alimentos e bebidas para consumo imediato, que cresceram 79%.
No que diz respeito à atividade física, o professor Diego Moresco conclui que "quem já tinha o costume de se exercitar antes da pandemia, seguiu se exercitando em casa, procurou acompanhamento on-line mas, com toda a certeza, isso foi menos eficaz e diminuiu muito a adesão. Em breve, devem ser realizadas pesquisas sobre o assunto, mas acredito que o isolamento não criou novos adeptos. A minha impressão imediata, nestes quase dois anos de pandemia, é que houve uma diminuição no nível de atividade física".
Para a nutricionista Leticia Chistianetti, é importante ressaltar que nem todas as famílias tiveram oportunidades somente positivas ou apenas negativas. As experiências, possivelmente, foram mútuas. "O primeiro aprendizado, do ponto de vista nutricional, é que estar em casa aproxima as famílias de uma possibilidade de socialização na hora das refeições. A pandemia abriu espaço para que pudéssemos cozinhar com os nossos filhos, por exemplo. Essas experiências são muito ricas no processo de educação alimentar, especialmente na primeira infância, e gera trocas afetivas que ficam na memória para sempre."
O lado triste e urgente é que, com a pandemia, o Brasil voltou ao mapa da fome. "Também precisamos falar do grande número de pessoas que entraram novamente no quadro de insegurança alimentar, não tendo o alimento presente na sua mesa. Talvez tenhamos que projetar isso para um incentivo a políticas públicas mais conscientes, tanto no senso de comunidade, quanto no senso de incentivo à produção de alimentos em espaços comuns, como pequenas hortas. É um trabalho de formiguinha, mas precisamos encontrar formas de ampliar o acesso aos alimentos", conclui Letícia.
Para a psicóloga Andressa Celente, o principal aprendizado que a pandemia trouxe refere-se à saúde mental. "Houve um aumento significativo de pessoas buscando psicoterapia e entendendo que muitas questões que pareciam ser possíveis de 'colocar para debaixo do tapete' não se sustentaram nesse período de tantas mudanças. Muitos relacionamentos acabaram, tivemos muitas perdas, consequências emocionais pelo próprio distanciamento, sobrecarga de trabalho e autocobrança por trabalhar em casa. Esses e outros fatores fizeram muitos entenderem que precisavam de auxílio profissional. Além disso, percebi que as pessoas deram mais valor e atenção à família, devido ao reconhecimento de que não sabemos quando iremos perder entes queridos, agora com mais certeza do que já se tinha. Perceberam o quanto estavam distantes, mesmo perto fisicamente, e assim puderam rever as suas relações para fortalecê-las. Por fim, algo que muitas pessoas começaram a fazer, mas que ainda precisam melhorar muito, é usar mais flexibilidade para lidar com as situações da vida, com suas relações e suas emoções".
A pandemia pegou o mundo todo de surpresa e precisamos nos adaptar a um novo estilo de vida. Agora, com o número de vacinados aumentando, começamos a enxergar o fim desse período com tantas privações. Muita coisa ainda deve mudar. Autoridades sanitárias alertam que o momento é, ainda, de ter calma, continuar com os protocolos de segurança e, mais do que nunca, o autocuidado deve ser priorizado para conseguirmos lidar com as mudanças que estão por vir com foco e com a ansiedade sob controle.