Pandemia intensifica a fome no Brasil
Insegurança alimentar é quando alguém não tem acesso pleno e permanente a alimentos. No Brasil, esse problema não surgiu com a pandemia de Covid-19, mas foi agravado pela crise sanitária. Hoje, mais da metade da população brasileira não tem acesso a alimentos, nos mais variados níveis: leve, moderado ou grave.
"Os resultados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), que coletou informações em dezembro de 2020, mostra que menos da metade dos domicílios brasileiros (44,8%) tinha seus moradores em segurança alimentar. Dos 55,2% que se encontravam com algum grau de insegurança alimentar, 9% conviviam com a fome, ou seja, estavam em insegurança alimentar grave. E no meio rural, justamente onde o alimento é produzido, essa condição era ainda pior, chegando a 12%", alerta a nutricionista Lisete Griebeler Souza, vice-presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do RS (Consea RS) e presidente da Associação Gaúcha de Nutrição (Agan).
A pesquisa revelou também que a perda de emprego de algum morador e o endividamento da família são as duas condições que mais impactaram o acesso aos alimentos. Nas duas situações, a insegurança alimentar grave atingiu seu patamar mais alto, 19,8%. No entanto, o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso Nacional para reduzir os efeitos da crise sanitária sobre o emprego e a renda tem sido insuficiente para superar a condição de insegurança alimentar das famílias. Ainda de acordo com o levantamento, a fome no Brasil é mais grave em determinado gênero, cor e grau de escolaridade. Nos dados de 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres, os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem. Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre pessoas de cor/raça branca, esse percentual foi de 7,5%.
Realidade possível de ser mudada
A fome no Brasil não é um problema recente, mas já estivemos bem perto de resolvê-lo, tanto que as medidas adotadas aqui serviram de modelo para outros países. Entre 2004 e 2013, os resultados da estratégia Fome Zero, aliados a políticas públicas de combate à pobreza e à miséria, tiraram o Brasil do mapa da fome. Ou seja, nós podemos, sim, acabar com a fome no país.
De acordo com o inquérito desenvolvido pela Rede PENSSAN, é urgente que se criem condições para garantir uma alimentação saudável e constante a toda população, assim como reduzir as desigualdades. Mais do que medidas assistencialistas - que são necessárias pela gravidade da situação em que vivemos -, a solução para erradicar a fome passa por políticas de geração de emprego e renda.
"Realmente é um problema muito complexo que vem de uma questão estrutural da nossa sociedade. Mas acredito que devemos começar pelo aumento de investimento nas políticas públicas, que já se mostraram efetivas na redução da fome anteriormente. Além da criação de novos programas e reforço de outros já existentes para geração de renda e de empregos", conclui Lisete.
Programas vigentes
- Programa de Aquisição de Alimentos (PAA): criado pelo art. 19 da Lei nº 10.696, de 02 de julho de 2003, possui duas finalidades básicas: promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar. Por meio dessa iniciativa, os órgãos públicos compram os alimentos da agricultura familiar, sem necessidade de licitação, e os destinam às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, à rede socioassistencial, aos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional e à rede pública e filantrópica de ensino.
- Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE): oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. O governo federal repassa a estados, municípios e escolas federais, valores financeiros de caráter suplementar para a cobertura de 200 dias letivos, conforme o número de matriculados em cada rede de ensino.
Em abril de 2020, o Planalto sancionou a Lei 13.987/20, que garante a distribuição de itens da alimentação escolar às famílias dos estudantes da educação básica da rede pública, mesmo com as aulas suspensas devido à pandemia do coronavírus. Com isso, alunos de zero a 17 anos, matriculados na educação infantil, ensino fundamental e ensino médio receberam kits com gêneros alimentícios adquiridos pelas escolas com os recursos do PNAE.
- Bancos de Alimentos: em um levantamento realizado em 2017, a Rede Brasileira de Bancos de Alimentos estimou a existência de 218 unidades em funcionamento em todas as capitais e nas principais regiões metropolitanas do país. No Rio Grande do Sul, o Banco foi criado em 2007, com o objetivo de estabelecer uma padronização de serviços e alinhamento da metodologia, levando os benefícios para todo o Estado. Atualmente são 23 Bancos de Alimentos associados no Rio Grande do Sul, abrangendo 29 municípios e seguindo a mesma sistemática de trabalho, levando saúde e segurança alimentar para as comunidades carentes.
É possível ajudar doando alimentos ou prestando serviços, como o transporte de mantimentos. O telefone é (51) 30268020 e o e-mail é [email protected].
- Mesa Brasil Sesc: é uma rede nacional formada por mais de 3 mil parceiros doadores, entre produtores rurais, atacadistas e varejistas, centrais de distribuição e abastecimento e indústrias de alimentos, além de empresas de diversos ramos de atividade, que doam seus excedentes de produção, alimentos fora dos padrões de comercialização, mas em condições seguras, próprios para o consumo. O programa funciona desde 1994 e atende prioritariamente pessoas em situação de vulnerabilidade social e nutricional, assistidas por entidades sociais cadastradas. Além disso, também atua em caráter emergencial com um trabalho de logística humanitária, mobilizando parceiros, arrecadando e distribuindo doações para pessoas atingidas por calamidades em todo o país.
É possível ajudar doando alimentos, produtos de limpeza e higiene pessoal, embalagens descartáveis, oferecendo serviços de transporte ou, ainda, trabalho voluntário em atividades operacionais e educativas, além de recursos financeiros. O telefone para contato é (51) 98407-6631 ou pelo e-mail [email protected].
- Ação da Cidadania: foi fundada em 1993 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. O projeto está presente em 19 estados do país e no Distrito Federal. Em 2020, arrecadou mais de R$50 milhões e cerca de 10 mil toneladas de alimentos. É possível ajudar doando cestas básicas, alimentos individuais não perecíveis ou doações em dinheiro. Para entrar em contato, o telefone é (51) 3557-0640 e o Whatsapp é (51) 98940-9115. E-mail: [email protected]
Lei para combater o desperdício de comida
Outra iniciativa importante no combate à fome refere-se à Lei 14.016, de 23 de junho de 2020, que busca diminuir o desperdício com a doação de excedentes de alimentos para o consumo humano. Com essa lei, os estabelecimentos que produzem ou fornecem alimentos, sejam in natura, produtos industrializados ou refeições prontas para o consumo, estão autorizados a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano, desde que atendam aos seguintes critérios: estar dentro do prazo de validade e nas condições de conservação especificadas pelo fabricante; não ter comprometidas sua integridade e a segurança sanitária, mesmo que haja danos à sua embalagem; e manter suas propriedades nutricionais e a segurança sanitária, ainda que tenham sofrido dano parcial ou apresentem aspecto comercialmente indesejável.
A nutricionista Lisete explica que "quando a Lei 14.016 surgiu, recebemos a notícia como um auxílio para equacionar o paradoxo da quantidade de alimentos excedentes em boas condições de consumo que vai para o lixo enquanto tantas pessoas estão com fome, o que incomoda todos enquanto cidadãos. Mas a lei é muito ampla e cheia de problemas, não garantindo a segurança higiênico-sanitária dos alimentos doados e nem a sua qualidade nutricional, podendo gerar um novo problema de saúde pública para a população em vulnerabilidade".
Considerando a necessidade de apoiar na garantia da segurança sanitária da distribuição desses alimentos, algumas entidades envolvidas com o tema, dentre elas o CRN-2, a Agan e o Consea RS, elaboraram a Cartilha de Orientações para Doação de Alimentos. Além de explicar as condições em que cada item precisa estar para ser doado, a cartilha traz orientações para quem vai doar e também para quem vai receber os produtos.
"Hoje, a qualidade e a integridade dos alimentos doados dependem da consciência e responsabilidade dos doadores e receptores. A sua regulamentação é fundamental para reduzir os riscos e incentivar as doações. Mas esse processo de regulamentação é lento e a lei já está sancionada, podendo ser colocada em prática. Por esta razão, resolvemos criar esta cartilha para auxiliar e nortear quem quer doar e quem vai receber, minimizando os riscos", expõe Lisete.
Neste momento, a regulamentação da Lei 14.016 está na agenda regulatória 2021-2023 da Anvisa, que formou um grupo para fazer a Análise de Impacto Regulatório (AIR) da Regulamentação Complementar da Doação de Alimentos com Segurança Sanitária.
"Faço parte desse grupo representando a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, pela Agan e pelo Consea RS. O trabalho iniciou em 07 de outubro e já aconteceram três oficinas das oito previstas. Já foram discutidas a definição do problema regulatório, a identificação dos atores afetados ou envolvidos na lei e quais as causas e consequências do problema. No final das oito oficinas, em fevereiro de 2022, será elaborado o relatório final para orientar e subsidiar a tomada de decisão da regulamentação", adianta a nutricionista.
Outras propostas de legislações para redução de desperdício
O deputado Luiz Marenco criou um Projeto de Lei que permite a doação de alimentos no Estado e foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em 12 de novembro de 2019. No dia 03 de dezembro do mesmo ano, foi sancionada pelo governador, sob o número 15390/2019. Porém, até agora não foi regulamentada pelo Executivo. "Tenho cobrado essa regulamentação. Por duas oportunidades, uma em 2020 e outra este ano, enviei amplo material à chefia da Casa Civil, sugerindo urgência na regulamentação da Lei, que infelizmente espera há quase dois anos", salienta Marenco.
As principais diretrizes são as de permitir a doação e a utilização de gêneros alimentícios e excedentes de alimentos oriundos de cozinhas industriais, buffets, restaurantes, padarias, supermercados, feiras, sacolões, mercados populares, centrais de distribuição e de outros estabelecimentos congêneres. A lei dispõe que, na manipulação dos gêneros alimentícios e na elaboração dos alimentos, devem ser observadas as boas práticas operacionais. Prevê a segurança de programas de qualidade alimentar estabelecidos pela legislação sanitária vigente, com o objetivo de qualificar a segurança alimentar plena. Também define que seja um processo gratuito a entidades públicas ou privadas que atendam segmentos populacionais em situação de exclusão ou vulnerabilidade social ou sujeitos à insegurança alimentar e nutricional.
"A importância dessa lei é dar segurança jurídica aos doadores e poder amenizar a insegurança alimentar numa parcela importante da população rio-grandense", explica o deputado. Poderão ser contempladas creches, casas-lares, centros de convivência e fortalecimento de vínculos, abrigos para idosos, albergues, casas de apoio, clínicas e comunidades terapêuticas para dependentes químicos e outras instituições sociais que tenham condições de receber os alimentos.
Por fim, Marenco explica que a ideia de facilitar a doação de alimentos excedentes é objeto de mais uma lei na capital gaúcha e outra lei federal: "Nosso projeto foi inspirado na Lei 8158 de 8 de dezembro de 2016, de Caxias do Sul, porém quando estudávamos o assunto, tomamos conhecimento da existência de legislação semelhante na cidade de Rio Grande, a Lei 5641 de junho de 2002, regulamentada em 2014. Após a nossa lei ser sancionada pelo executivo gaúcho, fato que aconteceu em 03 de dezembro de 2019, surgiu a Lei Federal 14.016 de 23 de julho de 2020, versando sobre o mesmo tema. Isso nos gera orgulho por termos inspirado o surgimento de uma Lei a nível de Brasil que possa, de certa forma, melhorar a vida de compatriotas carentes em todo o território nacional. Porto Alegre também aprovou em 06 de outubro de 2021 uma lei similar que rapidamente foi sancionada pelo executivo municipal, dia 19 do mesmo mês, sob o número 12.905/2021".
Em Porto Alegre, a vereadora Fernanda Barth propôs um Projeto de Lei com o mesmo teor - de doar alimentos excedentes -, que foi aprovado junto à Casa Legislativa no dia 06/10/2021 e a Lei 12.905 entrou em vigor no dia 18 de novembro de 2021. "A situação de grave insegurança alimentar é a realidade no Brasil e no mundo. Podemos observar em diversos estabelecimentos que, ao produzirem os alimentos para venda, muitos não são consumidos/vendidos e, diante disso, acabam sendo destinados para o lixo. Assim, a importância da doação desses excedentes para pessoas que necessitam de comida, que estão passando fome, é de uma enorme magnitude", defende Fernanda. As principais orientações do Projeto de Lei são as de que os alimentos devem estar dentro do prazo de validade, em condições próprias para consumo, e devem ser observadas as suas condições de preservação e mantidas as suas propriedades nutricionais e, claro, respeitar as normas sanitárias.
As doações serão fiscalizadas por um responsável técnico com curso de Boas Práticas de Manipulação de Alimentos emitido pelo órgão de Vigilância Sanitária do município de Porto Alegre. "Ele deverá atestar o controle de qualidade dos alimentos na saída dos estabelecimentos e repassar as orientações à entidade receptora acerca da conservação e consumo dos alimentos doados", finaliza a vereadora.
O papel dos nutricionistas para garantir alimentação à população
"O nutricionista tem um papel fundamental nas políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, de forma direta, atuando profissionalmente em programas como o PNAE, o PAA e outros. Ou indiretamente, por meio da sociedade civil organizada, participando dos Fóruns e Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (FESANS/RS e Consea RS), municipais e estaduais, onde pode atuar como consultor e fiscalizador de políticas públicas, exercendo seu papel de cidadão", esclarece a nutricionista Lisete.
No PNAE, por exemplo, é papel do nutricionista fazer os cardápios de acordo com a faixa etária atendida nas escolas, com as necessidades nutricionais, cultura e disponibilidade de produção local de alimentos, além de programar as compras, adquirindo o máximo possível, de produtos da agricultura familiar e alimentos produzidos na região, incentivando a economia local e melhorando a qualidade nutricional das refeições nas escolas. Segundo a nutricionista Lisete, "muitas crianças e jovens matriculadas nas escolas públicas têm nessas refeições realizadas no ambiente escolar a sua única fonte de alimentação, pois vêm de domicílios que estão em insegurança alimentar. Além disso, muitas famílias da agricultura local comercializam seus produtos para a alimentação escolar, garantindo sua renda. Esses programas são fundamentais e muito efetivos, mas infelizmente os investimentos públicos vêm sendo reduzidos nos últimos anos, além do desmantelamento dos programas por meio de projetos de lei que alteram as suas funções", alerta Lisete.