Insegurança alimentar e o papel do nutricionista para tirar o Brasil do mapa da fome

Data de Publicação: 16 de junho de 2023


Trinta e seis por cento dos brasileiros não tiveram dinheiro para comprar comida para si ou para sua família em algum momento entre junho de 2020 e junho de 2021. O dado foi divulgado em 2022 pela Fundação Getúlio Vargas, a partir da análise do Gallup World Poll, uma base de dados que compara informações de 160 países desde 2006. 

Com o aumento do índice, que cresceu seis pontos percentuais em relação a 2019, o Brasil passou a superar a média mundial, que foi de cerca de 30%. O dado revela um cenário extremo: em 2020, no mundo, 2,4 bilhões de pessoas estiveram em situação de insegurança alimentar moderada ou severa. No Brasil, esse número é superior a 33 milhões de pessoas. 

A erradicação da fome é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, e o profissional de nutrição tem um papel fundamental para garantir que a comida chegue à mesa do brasileiro.

 

Segundo outro levantamento, divulgado este ano pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2018 o Brasil voltou ao mapa da fome, do qual havia saído em 2015. Um país entra no mapa da fome da FAO quando mais de 2,5% da população sofre com a falta crônica de alimentos. De acordo com os dados apresentados, o problema atingiu 4,1% dos brasileiros. 

Para a diretora de Segurança Alimentar e Nutricional da Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Caxias do Sul, nutricionista Cristina Fabian, o nutricionista tem um papel fundamental no impulsionamento e execução das políticas públicas necessárias para erradicar a fome. 

“O nutricionista tem prerrogativas exclusivas na execução de algumas políticas, como a questão dos cardápios. A partir disso, nós conseguimos abrir um leque grande de atuação e interface com diversas áreas. Por exemplo, na alimentação escolar, esse profissional pode ser o protagonista na negociação com o agricultor familiar, garantindo um alimento de muito melhor qualidade e atuando em outras esferas, como desenvolvimento econômico. Nós temos o poder da caneta, de dizer o que cada população vai precisar, a forma de qualificar a alimentação e reduzir custos, inclusive na área da saúde, evitando doenças crônicas ligadas à obesidade”, destaca Cristina. (foto ao lado).  

“O nutricionista tem prerrogativas exclusivas na execução de algumas políticas, como a questão dos cardápios. A partir disso, nós conseguimos abrir um leque grande de atuação e interface com diversas áreas. Por exemplo, na alimentação escolar, esse profissional pode ser o protagonista na negociação com o agricultor familiar, garantindo um alimento de muito melhor qualidade e atuando em outras esferas, como desenvolvimento econômico. Nós temos o poder da caneta, de dizer o que cada população vai precisar, a forma de qualificar a alimentação e reduzir custos, inclusive na área da saúde, evitando doenças crônicas ligadas à obesidade”, destaca Cristina.  

 

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil (II VIGISAN), realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), demonstrou que  58,7% dos brasileiros (leia-se 125,2 milhões de pessoas) enfrentaram alguma situação de insegurança alimentar entre novembro de 2021 e abril de 2022: 28% sofreram insegurança alimentar leve;  15,2% vivenciaram insegurança alimentar moderada e 15,5% estiveram em situação de insegurança alimentar grave. Já na primeira edição, em 2021, o inquérito demonstrou que a fome no Brasil havia retornado aos patamares de 2004, quando a insegurança alimentar atingia 34,9% dos domicílios, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE. 

A questão da fome foi bastante impactada pela pandemia, mas já vinha numa tendência de agravamento anterior à Covid-19. A nutricionista Cristina Fabian ressalta que a insegurança alimentar no país foi agravada pela descontinuidade de algumas políticas públicas que, segundo ela, são fundamentais para garantir o acesso aos alimentos. 

“O Brasil saiu do mapa da fome pela primeira vez em 2014. E como nós conseguimos isso? Foi graças a políticas públicas que foram implantadas e que permitiram que a população tivesse um acesso maior aos alimentos. A insegurança alimentar no Brasil voltou a acontecer antes mesmo da pandemia, justamente porque nós tivemos o rompimento de algumas destas políticas que estavam sendo executadas. Uma delas teve um papel importantíssimo, a de alimentação escolar, uma política antiga e de referência para o mundo inteiro. E que qualificações nessa política ocorreram? Por exemplo, precisamos comprar minimamente 30% dos recursos repassados pelo Governo Federal, em produtos da agricultura familiar. Isso faz com que tu compres um alimento da safra, que é muito mais rico em nutrientes e em qualidade. Com isso, também se incentiva a agricultura familiar. Foram programas desse tipo, juntamente com os bancos de alimentos, os restaurantes populares, as cozinhas comunitárias, as hortas comunitárias, que conseguiram promover mais acesso aos alimentos. Então, durante a pandemia, nós tivemos um aumento muito grande da questão da fome no país, mas ela já vinha crescendo”, explica Cristina.

Levando-se em consideração que, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, três em cada 10 famílias pesquisadas relataram incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e preocupação sobre a quantidade da alimentação no futuro imediato, fica evidente a necessidade da intervenção do poder público para garantir que essas pessoas tenham acesso aos alimentos.  

De acordo com o estudo, as regiões mais afetadas pela insegurança alimentar são Norte e Nordeste, onde quatro em cada 10 famílias informaram terem sofrido redução parcial ou severa no consumo de alimentos nos três meses que antecederam as entrevistas; nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, o índice foi de três a cada 10 famílias e na região Sul, duas a cada 10 famílias relataram o problema. 

“Quando o Brasil saiu do mapa da fome, a FAO considerava somente a insegurança alimentar grave. Hoje, ela considera também a insegurança alimentar moderada. Por quê? Porque quando falamos da insegurança alimentar grave, estamos falando da fome. Mas quando falamos da insegurança alimentar moderada, estamos falando de rupturas de padrões alimentares, ou seja, é aquela pessoa que teve que deixar de comer carne para comer salsicha, porque não tem mais condições de comprar carne. Aquela pessoa que deixou de comer frutas e verduras para comer comida de pacotinho porque é mais barato. Então, essa ruptura de padrão alimentar também é importante na questão da insegurança alimentar. É possível verificar um alto grau de obesidade nas pessoas com vulnerabilidade social. Justamente porque o acesso a alimentos industrializados acaba sendo mais barato e mais fácil. Daí a importância das políticas públicas para permitir o acesso e uma educação para o consumo desses alimentos de melhor qualidade”, defende Cristina Fabian. 

Bancos de alimentos

Uma das políticas públicas mais consagradas no combate à insegurança alimentar são os Bancos de Alimentos. Interligados por redes nacional e estaduais, eles são operacionalizados diretamente pelo poder público ou por intermédio de organizações da sociedade civil. 

Vinculado à Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Banco de Alimentos de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, trabalha a questão do aproveitamento dos alimentos juntamente à agricultura familiar e à central de abastecimento.

“Nós arrecadamos aquele alimento que não seria viável comercialmente, porque não tem o tamanho ou coloração suficiente, por exemplo, mas que está apto ao consumo, e fazemos sua distribuição às entidades cadastradas”, conta Cristina Fabian.  Ao todo, 109 instituições são atendidas e oferecem 13 mil refeições por dia em Caxias do Sul. Outra causa fundamental a ser atacada é o desperdício de alimentos.

“Nós não podemos admitir que, em pleno século XXI, ainda tenhamos pessoas vivendo o flagelo da fome, com todo o alimento disponível que nós temos, especialmente no Brasil, que é um dos maiores produtores de alimento do mundo. Com relação ao desperdício, os bancos de alimentos têm um papel muito importante no combate a essa situação. Os estudos nos dizem que, no Brasil, de tudo o que é produzido, cerca de 30% se perde, desde a hora da colheita até o consumo final. Então isso engloba desde aquele alimento que nem é retirado da roça porque ele não terá mercado e valor econômico, passando pelo transporte e comercialização, até a nossa casa. Então, imagina que, de cada 10 caixas de alimento, três vão parar no lixo”, diz Cristina.

Mesmo no Banco de Alimentos, combater o desperdício não é tarefa fácil. Na época do caqui, por exemplo, a instituição recebia em torno de 50 toneladas. No entanto, boa parte da fruta não era aproveitada, porque as pessoas só conheciam uma forma de consumi-la, in natura

“Chegou um momento em que ninguém queria mais receber a fruta. Então desenvolvemos uma receita de molho de caqui e começamos a capacitar as instituições para a sua preparação, evitando o desperdício”, conta Cristina. 

É consenso entre especialistas, que a desigualdade de renda é o principal fator causador da insegurança alimentar no Brasil e no mundo. Desse modo, as famílias mais suscetíveis são aquelas com renda inferior a meio salário mínimo, assim como aquelas em que o chefe da família apresenta baixa escolaridade (menos de oito anos de estudo formal). Além disso, o tipo de relação de trabalho também tem impacto direto sobre a segurança alimentar: a condição de emprego formal está associada à segurança alimentar em mais de 2/3 das famílias. 

A pergunta a ser feita é: como um país continental como o Brasil, que está entre as dez maiores economias do mundo e é o quarto produtor de alimentos do planeta - atrás apenas de China, Índia e Estados Unidos - ainda tem gente que passa fome ou não tem o que comer no dia a dia?

   

      Insegurança alimentar: quando o acesso aos alimentos em quantidade e qualidade suficientes compromete outras necessidades

     Insegurança alimentar leve: quando há incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e/ou quando a
     qualidade da alimentação já está comprometida 

     Insegurança alimentar moderada: quando ocorre situação de quantidade insuficiente de alimento com valor nutricional adequado

     Insegurança alimentar grave: quando há privação do consumo de alimentos e fome