20 de novembro: é preciso racializar as discussões sobre alimentação e nutrição
Data de Publicação: 18 de novembro de 2024
Crédito da Matéria: Soraya Bertoncello (Jornalista - MTbE 17943/RS)
Fotos: Assessoria de Comunicação CRN-2
Fonte: Bruna de Oliveira (CRN-2 18060)
Bruna de Oliveira (CRN-2 18060), a Bruna Crioula, pesquisadora alimentar e fundadora da Crioula Curadoria Alimentar, um ecossistema de criações de soluções ecológicas e ancestrais nos sistemas alimentares que democratiza conhecimentos sobre alimentação saudável numa afroperspectiva, , nem sempre se imaginou nutricionista. Ela conta que aprendeu com seus familiares e vizinhos valores como solidariedade e a necessidade de ajudar ao próximo, mas na adolescência, sonhava em cursar Moda - um curso inexistente, na época, em universidades públicas. Por isso, se formou Técnica em Nutrição para poder trabalhar e pagar a faculdade que desejava. Entretanto, durante o curso, ao fazer um trabalho sobre o combate à fome, Bruna conta que percebeu a sua verdadeira vocação e hoje, enxerga a Nutrição como a sua forma de deixar uma marca positiva no mundo.
O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é uma data que leva a reflexão sobre o racismo que ainda persiste em diversos campos da nossa sociedade. Nesse dia, o CRN-2 traz uma entrevista com Bruna na qual ela reflete sobre a necessidade urgente de racializarmos o debate também dentro do campo da saúde e da nutrição.
Como podemos levar para dentro da sala de aula e dos consultórios a necessidade do nutricionista se enxergar como um agente de combate à fome, que tem um papel social como profissional de saúde, e também por discutir a pluralidade cultural e étnica do nosso país e os seus reflexos na alimentação?
Eu não acho que só fazer oficinas de letramento racial seja o suficiente para que nutricionistas, sejam eles em processo de formação ou já formados, incorporem práticas antirracistas. Não é porque uma pessoa branca passa por uma oficina de letramento racial que ela vai compreender todas as dimensões, aspectos e níveis de profundidade do que é o racismo no Brasil. E eu vejo isso pelo simples fato das pessoas não aceitarem quando eu e outras profissionais (nutricionistas, pesquisadoras) falam em racismo alimentar. Eu tenho feito essa análise, que ainda é uma análise incipiente, mas é assim: o que não está dentro de injúria racial, aparentemente, para pessoas brancas, não é racismo. E isso é uma inverdade, é uma perversão, porque o racismo é um conjunto de fenômenos que vão oprimir pessoas racializadas na sua totalidade de vida. Então, se pessoas brancas não conseguem entender o que é racismo, entender que isso se atravessa em aspectos sociais, em aspectos ambientais e no nosso campo, em aspectos nutricionais e alimentares, vai ser muito mais difícil construir linhas de cuidado que sejam, de fato, antirracistas.
Dentro da nossa categoria profissional, que historicamente forma mulheres brancas, existem duas linhas que são o “mainstream” da atuação: a dietoterapia, ou seja, o tratamento nutricional para reduzir impactos de uma doença – muitas vezes uma doença crônica não transmissível, ou seja, que não têm cura, ou do ponto de vista da performance corporal – e aqui eu junto a nutrição esportiva, estética, funcional... A nutrição clínica seria a mediação entre esses dois campos que eu estou falando, um campo mais voltado para a dietoterapia e outro mais voltado para a performance corporal. Aí nós teremos os profissionais que podem ter consultórios ou vão atuar em hospitais, em unidades de clínica. Mas também temos, dentro da nutrição, a alimentação coletiva e a saúde coletiva. Eu estou fazendo essa diferenciação pois não quero invisibilizar pessoas da nutrição que entenderam o papel social da sua formação na saúde. As pessoas que entenderam esse papel acabam indo para a saúde coletiva, que por muito tempo foi esse grande bolo que juntava os inconformados, os que queriam fazer alguma coisa para mudar o status quo. Dentro da saúde coletiva, vamos ter os profissionais que irão trabalhar com epidemiologia, aqueles que vão trabalhar com órgãos e políticas públicas.... Quando eu chego em 2010, no meu primeiro semestre de faculdade, esse era o caminho que apontavam para mim: “ah, você quer trabalhar com combate à fome? Você quer discutir desigualdade social? Bom, então você tem que ir para a saúde coletiva”. E eu nunca entendi dessa forma, porque primeiro a gente precisa racializar o debate dentro da alimentação e da nutrição.
E como isso pode ser feito, isto é, o que significa racializar o debate?
Racializar esse debate significa questionar o porquê de não termos autores e autoras negros e negras para discutir o campo da alimentação e nutrição. Por que que, sempre quando há notícias, reportagens especiais, sobre alimentação e nutrição, as fontes especialistas desses conteúdos midiáticos são pessoas brancas? É como se não houvesse uma massa crítica negra pra discutir os assuntos de alimentação e nutrição. E essa mudança de paradigma é uma coisa que demora, ainda estamos passando por isso. Para mim, consciência negra é uma coisa que se desenvolve, sendo você uma pessoa negra ou não negra, pois a gente vive em uma sociedade que é colonizada e reproduz processos de colonização, que constroem uma subjetividade embranquecida. Então, teremos pessoas negras que entram na universidade, no curso de nutrição, mas que não necessariamente têm letramento político, racial associado sua trajetória e que vão sair da formação com as mesmas ambições profissionais que pessoas brancas. Então acho que é urgente entendermos como, quando e com quem vamos racializar o debate. E esse debate precisa ser feito de maneira coletiva ou, no mínimo, com estrutura, para que a nossa voz seja amplificada e autorizada. Existem muitas vozes negras capazes de discutir alimentação e nutrição no Brasil, mas essas vozes não são autorizadas. Precisamos enegrecer o processo.
Quais os exemplos que caminham nesse sentido?
A gente tem grupos como o CulinAfro, um grupo de pesquisa e extensão da UFRJ; tem a Crioula, que é o meu projeto, tem a Rede Ajeum de nutricionistas negras e negros... São espaços onde buscamos construir letramento alimentar racializado. Eu trago esses exemplos de organizações que, a partir de seus espaços, buscam o enegrecimento. Em um primeiro momento, é mesmo um movimento de aquilombar, de nos reconhecermos enquanto pares. É quando elaboramos o racismo que vivemos dentro e fora da universidade. São poucos alunos negros nos cursos de nutrição e geralmente com uma formação embranquecida, colonizadora, que não discute questões simbólicas e sociológicas da alimentação. A gente precisa fazer o giro epistêmico e considerar as questões sociológicas e antropológicas na construção de conhecimento.
Na tua trajetória, como se deu esse giro epistêmico?
Eu tenho um texto (clique aqui para acessar) onde falo que fiz um duplo giro: uma nutricionista negra sair do campo central da nutrição e ir para as ciências sociais e, nas ciências sociais, racializar o debate. São dois momentos que são complementares porque, ao racializar os fenômenos de comer e nutrir, eu percebo o quanto ainda estou sozinha, pois nem na Nutrição nem nas Ciências Sociais existe uma discussão honesta sobre a alimentação a partir de parâmetros que não sejam eurocêntricos. Então, voltando à primeira pergunta, como podemos mudar isso? Incluindo as discussões raciais para estudantes de nutrição. Porque as pessoas chegam na Universidade com objetivos e anseios já muito estereotipados. Mas acredito que a gente possa aquilombar e, aquilombando e construindo esses caminhos de representação, criando redes e movimentos, criamos sinergia com essas bolhas hegemônicas brancas na nutrição. É o que fazem esses movimentos que eu citei, como o CulinAfro, a Rede Ajeum e a Crioula Curadoria Alimentar. Felizmente hoje em dia, com as redes sociais, a gente tem mais oportunidades – eu tenho amigas que fiz assim, a gente vai se encontrando nos congressos, nos espaços, e construindo esse conhecimento racializado, onde as pessoas negras saem desse lugar de serem objetos de estudos para serem contadores de suas próprias histórias, criadores de narrativas que mostram que a população negra tem um conhecimento sistematizado, organizado, próprio, para falar sobre alimentação e nutrição, para entender o que que é saúde e doença, para agir em relação à promoção de saúde da sua própria comunidade.
Considerando que a Nutrição é um campo majoritariamente de profissionais brancos, como eles podem contribuir nessa construção?
A intenção desses projetos que citei é também dialogar com pessoas brancas. Acho que é preciso dar um passo atrás do tipo “vou entender o que é o racismo para conseguir compreender os fenômenos de opressão e violação do direito humano à alimentação adequada”. A Crioula promoveu um curso lá em 2022 ou 2023, Alimentação Saudável numa Afroperspectiva. No curso, nós tínhamos 4 eixos: a gente falava sobre racismo e suas faces, depois, epistemologias afro-orientadas de saúde, depois a gente falava sobre segurança alimentar e nutricional, saúde em si. E no último módulo, a gente falava sobre cozinha. Eu estou dando exemplos para mostrar que não é uma oficina de duas horas que vai construir a visão antirracista em uma pessoa, isso precisa ser um processo de educação permanente, uma construção que deve ser intrínseca ao currículo de formação profissional. Preciso ter esse componente de que, no final do curso, teremos uma pessoa sensível às questões raciais, às tensões que estão relacionadas a isso. Até porque um profissional de saúde branco, trabalhando com uma comunidade negra, tem que pensar no nível de responsabilidade do que fala para aquelas pessoas. As tensões raciais não deixam de existir porque a gente não fala sobre elas.
A gente sabe que os desastres ambientais têm cor e classe, pois são as pessoas pobres e pretas as mais atingidas. Como podemos repensar nossa alimentação e nosso consumo para tentar mitigar a degradação ambiental?
Colocar o componente de sustentabilidade nesse debate é mostrar, também, como a nossa formação ainda é limitada a pensar alimento, nutriente, caloria, alimentação só como parte do consumo. Mas para pensar alimentação, inevitavelmente, a gente precisa pensar de onde veio o nosso alimento, como ele chegou no nosso prato, quem foi que cozinhou e como eu vou descartar algum resíduo desse processo. Não dá mais para falar mais só em sustentabilidade, a gente precisa falar de regeneração, porque o sistema que que a gente vive é insustentável e ele não é regenerativo, não produz um passivo positivo pra natureza conseguir minimamente se estabilizar e reconstruir os seus processos. Não dá para a gente seguir usando o conceito de sustentabilidade e manter a forma como a gente vive. Não dá mais pra pensar nessa lógica porque o nosso modo de vida não vai permitir que a gente continue vivendo.
Os sistemas alimentares hoje, da forma como eles estão constituídos, promovem degradação ambiental. Essa é uma discussão que, no período em que eu me formei, era inexistente. Eu queria trabalhar com combate à fome e entendi que a sustentabilidade era, também, um caminho de prevenção. Aliás, eu acho que prevenção é uma palavra que a gente deveria falar muito mais na nutrição: como é que a gente previne a incidência e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis? Como é que a gente previne que os sistemas alimentares de fato garantam segurança alimentar nutricional para as pessoas? Como é que a gente constrói ações que vão fazer com que os sistemas alimentares, que hoje promovem destruição para pessoas e natureza, possam se transformar em um ciclo virtuoso e regenerativo? Por que que eu falo em virtude e regeneração? Por que a gente precisa, mais uma vez, racializar o debate sobre sistemas alimentares.
Como?
Segundo o último censo agropecuário do IBGE, a maioria dos pequenos agricultores, os que têm menor quantidade de terra, são agricultores negros. Mas a gente ainda tem aquela imagem de agricultura familiar como um colono de chapéu. Todo mundo denuncia que a agricultura familiar recebe menos incentivos do que o grande agronegócio, mas só em 2018 tivemos uma pesquisa para mostrar que a agricultura familiar, no Brasil, é negra. Qual é o projeto de estado que temos que inclui esses agricultores, ou por que será que a gente não tem um? Será que é só em função de um choque ideológico de como deveria ser a produção de alimentos no Brasil ou é porque isso mostra que existem mais pessoas negras no campo do que a gente imagina, e isso é ainda resíduo de uma abolição da escravatura que não construiu reparação?
Comer é um ato político?
Todo mundo diz que comer é um ato político. Eu sempre pergunto: qual é a política do comer? Porque se existe uma política do comer, a gente consegue entender que essa política cria barreiras para as pessoas acessarem alimentos in natura ou minimamente processados. A política do comer convencional domesticou uma série de plantas, produz elas de uma maneira insustentável, que promove a degradação, distribui elas de uma maneira injusta e não se responsabiliza pelos passivos ambientais ao longo desse processo todo. E aí a gente tem esses fenômenos de pessoas com menos poder aquisitivo que vão consumir mais produtos ultraprocessados, que tem uma qualidade de vida que não permite que elas tenham saúde ou vivam bem. E a roda fica girando, a indústria de alimentos fazendo lobby para o seu lado, o agronegócio fazendo lobby para o outro lado, e ativistas alimentares, pesquisadores, movimentos sociais gritando por uma transformação de sociedade.
Que transformações seriam essas?
Para transformar os sistemas alimentares a gente precisa transformar a sociedade. A gente precisa construir um plano de estado brasileiro, um plano de país que inclua as pessoas negras, indígenas, povos e comunidades tradicionais em todos os seus direitos, incluindo o direito à alimentação e nutrição, incluindo pensar soberania e segurança alimentar e nutricional, porque hoje a gente come o que o mercado nos oferece e não aquilo que está construindo culturas alimentares tradicionais e ancestrais. E é justamente pelo fato do de nós estarmos nos afastando de valores tradicionais da comensalidade que a gente tá vivendo os impactos na saúde, os impactos na economia, os impactos socioambientais.
Seria possível, então, falarmos em racismo alimentar?
Não é confortável para mim conviver com o racismo. E também não é confortável para pessoas brancas reconhecerem que elas são reprodutoras do racismo pelo simples fato de serem pessoas brancas. É difícil para as pessoas assumirem, entenderem que podem ser racistas e isso não significa que não sejam uma pessoa boa, porque o racismo não está atrelado a valores pessoais, está ligado com relações estruturantes da sociedade.
O racismo alimentar começa na falta de terra para plantar a semente, na falta de escolha para o uso dessa semente. Se a gente não botar as lentes da racialização, não entender as tensões raciais que também refletem nos sistemas alimentares, a gente vai continuar só secando o gelo achando que a escolha individual das pessoas vai ter um impacto transformacional no todo. Infelizmente não vai, porque à medida que a gente vai mudando os nossos hábitos de consumo, o mercado vai se adaptando para aglutinar esses modos de vida. Por exemplo, se a pessoa quer passar por uma transição alimentar para o veganismo, a indústria já entendeu essa tendência e já construiu alimentos ultraprocessados à base de plantas, mas não discute o fato de a pessoa não consumir banana, mas ela quer consumir um hambúrguer a base de plantas. Sim, a redução de carne é importante se a gente quer transformar os nossos sistemas alimentares, porque o gado que está ali no pasto que é resultado de desmatamento, de grilagem, de processos criminosos de violação de reservas ambientais, de aldeias, de quilombos, de espaços que produzem alimentos de uma maneira mais harmonicamente relacionada com a natureza.
Quando pensamos em alimentação, raça e sustentabilidade, a gente conflui dois tipos de racismo: o racismo alimentar e o racismo ambiental. Eles andam de mãos dadas, porque os sistemas alimentares são reflexo das relações sociais contemporâneas que a gente tem hoje. Temos um sistema alimentar que gera degradação ambiental, então ele promove impacto de racismo ambiental na vida de pessoas e que, em função das mudanças climáticas, vão ter alterações na no acesso ao alimento saudável e de qualidade. Se a gente mudar o sistema alimentar, teremos pelo menos dois grandes benefícios. Um deles é mitigar os efeitos das mudanças climáticas. O outro é construir ciclos virtuosos pra que o direito humano à alimentação adequada seja garantido pra pessoas pobres, menorizadas, racializadas, e também pra essas pessoas que produzem alimento, porque não existe almoço se alguém não plantou antes. Depois que a gente começa a racializar, depois que a gente começa a incorporar a sustentabilidade no nosso modo de vida, é impossível “desver” essas assimetrias.